Sempre que ouvimos falar em problemas de memória, relacionamos a episódios nos quais não conseguimos nos lembrar de algo que aconteceu. Nunca ao fato de nos lembrarmos de algo que não aconteceu. Mas será possível termos recordações de coisas que não vimos, reviver emoções que não experimentamos?
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Gabriel Byrne em cena de "Tribunal sob suspeita"
Nas décadas de 1970 e 1980 Elizabeth Loftus, uma professora de Psicologia e Direito da Universidade da Califórnia, trabalhava como assistente de advogados de defesa em casos que envolviam testemunhas oculares. Sua tarefa era tentar convencer os jurados de que a memória não funcionava como infalíveis câmeras filmadoras, que tudo registram com absoluta precisão.
Até que em 1990 ela foi contratada por Dough Horngrad, um advogado encarregado de defender um pai cuja filha estava acusando-o de terríveis crimes*. Segundo os relatos da moça, seu pai, George Franklin, um senhor de 63 anos, teria estuprado e assassinado sua melhor amiga Susie Nanson, em 1969, quando ambas tinham oito anos de idade. A parte perturbadora da história - digo, além do estupro e do homicídio - era o fato de Eileen Franklin, a filha, ter se lembrado dos episódios mais de vinte anos depois de eles presumidamente terem ocorrido.
Loftus, com uma renomada carreira em psicologia e décadas de experiência forense, simplesmente não podia acreditar que alguém guardasse um trauma dessa magnitude adormecido em sua memória por tanto tempo e, de uma hora para outra, se lembrasse de tudo com seus mínimos detalhes. Ela não negava que esse tipo de crime acontecia, pois já tinha presenciado barbaridades semelhantes em seus anos de tribunal. Mas ela também sabia o quanto as pessoas eram manipuláveis e fantasiavam coisas. Também não havia na literatura científica qualquer prova de que memórias reprimidas fossem confiáveis.
Sua tese era que um homem estava prestes a ser condenado com base num depoimento com alta carga emocional, a respeito de fatos ocorridos décadas antes. Para ela, a moça poderia ter criado suas histórias a partir de sugestões de alguma pessoa próxima, como seu terapeuta por exemplo. Durante o julgamento, o depoimento de Loftus defendeu a teoria de que a memória é altamente influenciável, podendo ser alterada, mesmo de forma inconsciente e sem que isso represente, necessariamente, má-fé ou dolo da pessoa.
Ela descreveu alguns de seus experimentos onde os voluntários transformavam sinais de trânsito amarelos em vermelhos, colocavam prédios onde não havia nada, e lembravam-se de barbas negras em rostos lisos - como no diálogo abaixo, entre Leonard com Ted, do filme Amnésia:
"A memória não é confiável. Sério, a memória não é perfeita. Nem é boa. Pergunte à polícia. Depoimento de testemunha ocular não é confiável. Tiras não apanham assassinos lembrando coisas. Coletam fatos, fazem anotações e tiram conclusões. Fatos, não lembranças. É como se investiga. Eu sei, eu fazia isso. A memória muda o formato de um quarto, a cor de um carro. Lembranças podem ser distorcidas. São só uma interpretação, não são um registro. E são irrelevantes se você tem os fatos."
Para Loftus, toda a descrição do crime feita por Eileen baseava-se nos relatos da imprensa da época. Desde a pedra que seu pai teria usado para esmagar o crânio da sua amiga, até as manchas de sangue jamais encontradas em suas roupas.
Apesar da brilhante defesa, Franklin foi o primeiro americano condenado por abuso sexual e homicídio por um testemunho baseado na recuperação de memórias reprimidas.
A partir daí, alguns estados americanos alteraram o prazo de prescrição de crimes dessa natureza de "três anos do fato ocorrido" para "três anos da lembrança do fato ocorrido" - o que provocou uma avalanche de novos casos de pais sendo acusados por seus filhos de maus-tratos na infância.
O caso abalou profundamente Elizabeth Loftus que, dali em diante, passou a dedicar-se a provar que as memórias podem não só ser amplamente distorcidas, mas também inteiramente criadas. Ela buscava desesperadamente uma prova definitiva e irrefutável para a tese que defendia, sobre a fraca natureza da memória enquanto evidência ou até mesmo prova de um crime. E se essas memórias não eram reais, de onde viriam?
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Elizabeth Loftus precisava, então, criar um experimento que não deixasse dúvidas sobra tal possibilidade - e a maneira mais convincente de fazer isso seria, de fato, criar memórias em algumas pessoas.
Mas como fazer isso sem que o procedimento se tornasse algo traumatizante para seus voluntários e fosse, assim, aprovado pelos exigentes comitês de ética? Sua solução representa, em minha humilde opinião, o mais brilhante, engenhoso e elegante desenho de experimento que já tive o prazer de conhecer. Senão vejamos:
Com a ajuda de sua assistente Jacqueline Pickrell, Loftus recrutou 24 voluntários para participar da pesquisa. Às famílias desses voluntários, elas pediram que escrevessem três histórias reais de suas infâncias, cada uma com um parágrafo de extensão para preparar um breve folheto para o participante.
Mas a essas três pequenas histórias reais, as pesquisadoras acrescentavam uma quarta narrativa, de um fictício episódio onde a criança teria se perdido num shopping center local.
Os voluntários liam, então, as quatro histórias para depois recontá-las com suas próprias palavras. Caso não se recordassem de alguma das passagens descritas deveriam dizer apenas "Eu não me lembro disso".
Ao fim do experimento, o que mais surpreendeu a pesquisadora não foram os números e o seu relativo significado, mas a riqueza de detalhes com os quais as pessoas narravam fatos que efetivamente não vivenciaram. Uns falaram do medo que sentiram de nunca mais ver sua família novamente, outros lembravam de detalhes das pessoas que as ajudaram a encontrar seus pais ou das lojas por onde passaram e outros destacaram, ainda, a bronca que levaram depois do episódio.
Nenhum desses detalhes, contudo, estava nos folhetos entregues aos voluntários. Absolutamente todos haviam sido criados pelos próprios voluntários.
No total, 25% dos participantes aceitaram a fictícia história do experimento que foi batizado "Perdido no Shopping". Muito se discute sobre esse número, especulando que ele seria pequeno demais e pouco significativo dentro do reduzido universo pesquisado. Mas se pararmos para pensar que 25% das testemunhas oculares de crimes podem estar erradas, esse resultado certamente deixa de ser irrelevante. Além disso, não bastaria que uma pessoa narrasse um episódio que não viveu para provar que memórias podem ser implantadas?
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Nosso cérebro não consegue armazenar tudo o que nossos sentidos captam. Seja por questões de capacidade de armazenamento ou de praticidade na hora de processar tais memórias. Assim, como não lembramos de tudo o que nos acontece, selecionamos apenas alguns destaques. Por causa disso, recuperar uma memória não é como abrir um arquivo ou apertar o play num gravador. Essa tarefa assemelha-se mais a assistir a algumas partes desconectadas de um filme e tentar preencher os buracos supondo como deveriam ser. Algo como ver um trailer e imaginar o resto da película.
Quando você se lembra do seu aniversário de cinco anos, você incorpora informações que recebeu mais tarde das histórias de família, fotografias, vídeos caseiros e até de outras festas de aniversário a que foi ou assistiu na televisão. Depois de um tempo, você já não é mais capaz de distinguir suas memórias reais das informações que incorporou posteriormente. E o interessante é que você nem se dá conta que embaralhou tudo na sua mente e que talvez parte das suas memórias nem tenha acontecido de fato - o que no jargão próprio chama-se confusão de fontes.
Carol Travis, uma das autoras de Mistakes Were Made (But Not by Me): Why We Justify Foolish Beliefs, Bad Decisions, and Hurtful Acts citado no texto anterior conta uma intrigante passagem de sua própria infância onde ela viveu uma experiência semelhante. Uma de suas mais queridas lembranças era a do seu falecido pai lendo para ela uma história infantil à beira de sua cama antes de dormir. Mesmo adulta ela era capaz de sentir ainda o carinho paterno e as mesmas brincadeiras que faziam sempre em determinadas passagens do livrinho.
Recentemente, porém, ela havia encontrado o livro ao revirar quinquilharias do passado, armazenadas em algum lugar empoeirado de sua casa. Ao notar a data de publicação da obra, contudo, ficou em choque ao ver que o livro havia sido editado um ano após a morte de seu pai. Quem, então, lia as histórias para ela?
Este episódio, junto com o experimento anterior mostra três importantes características sobre o modo como lidamos com nossas memórias:
1. Como é desnorteante descobrir que uma memória rica e carregada de sentimentos e detalhes é inapelavelmente falsa;
2. Mesmo que tenhamos absoluta certeza de que uma memória é correta, ela não necessariamente o será;
3. Até mesmo os erros e as peças que nossa memória nos prega compõem nossos sentimentos e crenças atuais.
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Um outro fato muito curioso sobre o mesmo tema é narrado pelo neurologista americano Robert Burton no excelente On Being Certain: Believing You Are Right Even When You're Not. Na manhã seguinte à explosão do ônibus espacial americano Challenger, Ulrich Neisser e Nicole Harsch pediram a seus alunos que escrevessem, numa folha de papel, onde estavam e o que faziam no exato momento em que souberam da tragédia.
A dramática explosão da Challenger: onde você estava?
Dois anos e meio depois os estudantes foram novamente entrevistados sobre o mesmo assunto: onde estavam e o que faziam naquele fatídico 28 de janeiro de 1986. 25% dos relatos posteriores foram significativamente diferentes do que constavam em seus textos anteriores. Mais da metade continha algum nível de discrepância e apenas 10% foram precisos em suas memórias.
Alguns dos participantes desse estudo chegavam a questionar suas declarações anteriores, mesmo quando confrontados com suas narrativas escritas de próprio punho. O mesmo tipo de incoerência pode ser visto na literatura relacionada em casos notórios como o assassinato de John F. Kennedy e os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Aliás, onde você estava nessas ocasiões...?
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Em 1996 George Franklin foi libertado por um juiz federal, após cumprir seis anos da sua pena, baseado em dois argumentos: primeiro, a acusação não poderia ter dito aos jurados que o silêncio de Franklin significava presunção de culpa; e, segundo, o réu teria sido privado do seu direito à defesa, pois no primeiro julgamento seu advogado não pôde exibir as reportagens da época sobre o crime - o que daria indícios sobre as fontes de Eileen para a suposta criação de toda a história. Curiosamente, a promotoria não recorreu dessa segunda sentença, pois sua principal testemunha, Eileen Franklin, havia "se lembrado" de outros homicídios cometidos pelo pai, para os quais George tinha álibis sólidos como rocha.
Em maio de 2000, a APA (American Psychiatrists Association) publicou uma nota oficial com guidelines para os profissionais que trabalham com terapias que envolvem as memórias de seus pacientes, ao lidar com casos de abuso sexual na infância. Algumas abordagens terapêuticas trabalham com recordações de fatos da infância como forma de tratar traumas presentes.
A validade de tal procedimento é questionável, segundo a APA, pois alguns pacientes acusam seus terapeutas de direcioná-los ou até mesmo pressioná-los em direção a essas conclusões. Pesquisas recentes, como a de Elizabeth Loftus, mostram que a memória não registra fatos precisamente e ela pode ser alterada através da sugestão de pessoas nas quais os pacientes confiam. A psicoterapia foca-se, geralmente, em experiências percebidas por seus pacientes, mas raramente busca a confirmação de tais fatos.
Por fim, a nota oficial da APA faz algumas recomendações aos terapeutas. Em especial, que evitem fazer pré-julgamentos, notadamente os que atribuam quaisquer dificuldades dos pacientes a casos de abusos na infância - especialmente quando eles não podem ser comprovados. A terapia deve focar-se, nesses casos, em ajudar o paciente a entender melhor o que de fato lhe aconteceu e, assim, tirar suas próprias conclusões.
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Elizabeth Loftus teve um grande problema de aceitação de sua teoria, porquanto elas questionavam a própria tese de Freud sobre repressão de memórias desagradáveis. Mas independentemente de como pensam as diversas correntes na Psicologia, na Psicanálise ou mesmo na Psiquiatria - temas nos quais sou completamente leigo - o fato é que o trabalho de Loftus abre um importante e decisivo precedente nos procedimentos terapêuticos atualmente utilizados, tal como alerta o comunicado da APA.
Ao mesmo tempo, a questão da memória deve ser vista com mais cautela dentro dos tribunais, na forma como as testemunhas oculares são consideradas nos procedimentos forenses. Quando a memória - que é falha - está a serviço da Justiça - que é cega - corre-se o risco de fazer pessoas inocentes pagarem por crimes que não cometeram. Nesse caso, George Franklin era o homem que não estava lá.
Por essas e outras importantes pesquisas, a Dra. Elizabeth Loftus ocupou o 58o lugar numa lista com os 100 psicólogos mais influentes do século XX, elaborada em 2002 e é a primeira mulher da lista (Freud é o primeiro do ranking, Piaget o segundo, Skinner o oitavo e Festinger o décimo-segundo; mas quando organizada de acordo com a quantidade de citações entre os pesquisados, Skinner é o primeiro, Piaget o segundo, Freud o terceiro, Pavlov o sexto, Festinger o décimo-primeiro, Asch o quadragésimo-primeiro e Milgram o quadragésimo-sexto).
Seus estudos mostram um lado intrigante do modo como nossas memórias são elaboradas e a forma como isso interfere no comportamento humano. Vemos, também, que nossa visão de mundo é altamente influenciada por nossas memórias e vice-versa - e é justamente esse caminho de volta que soa contra intuitivo. Reescrever o passado parece atentar contra a nossa sanidade mental. Mas quem coloca a mão no fogo por sua própria sanidade mental? No próximo texto, veremos como David Rosenhan questionou as bases dos diagnósticos psiquiátricos na década de 1970 e como passou a enxergar o lado de fora do hospício.
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* Esse texto da própria Elizabeth Loftus descreve vários outros casos semelhantes.
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Leia a Introdução sobre esta série a respeito de famosos Experimentos em Psicologia, além de uma relação dos outros textos já disponíveis.
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Posted by: Ana Paula Chaves | 05/05/2015 at 08:15
antigamente esses experimentos pareciam ser feitos por açougueiros, muito sinistro!
Posted by: desentupimento | 16/11/2014 at 19:23
Rodolfo, seus textos são ótimos! Tive bons professores, mas tenho certeza que se tivesse assistido aulas com mestres com o raciocínio parecido com o seu, teria desenvolvido muito mais cedo um lado crítico. Cada dia, gosto mais e sempre recomendo aos meus amigos o que você escreve! Demais!
Posted by: Caroline Grava | 16/05/2011 at 13:41
Hoje parei para recarregar a área destinada a textos inteligentes em meu cérebro e vim direto para cá. Adorei o post!
Estou passando por um momento difícil em que um amigo "surtou" e ao ler alguns textos por aqui, enxergo muitas coisas que habitam e interferem em sua mente hoje em dia. Não que eu vá me transformar em um psicólogo, ao ler um Blog de um "não-psicólogo", mas alguns textos me ajudam muito nessa Missão Resgate.
Obrigado pelo seu Blog cara!
Posted by: João Homem | 14/08/2010 at 12:39
"Lembranças podem ser distorcidas. São só uma interpretação, não são um registro."
Este é o ponto!
Parabéns Rodolfo, por mais um texto primoroso que põe abaixo o mito do registro fático pela memória humana!
É exatamente por isto que em tempos bíblicos do Antigo Testamento já se exigia pelo menos duas testemunhas para que uma acusação pudesse ser aceita com base em "prova" testemunhal.
Posted by: Account Deleted | 09/08/2010 at 18:58
EU AMO VC CARA!
Posted by: JANE | 18/02/2010 at 15:00
O texto está muito bem escrito ( o que denota uma certa admiração com a Loftus).
Temos também a tendência de reescrever a história ... não com falsas lembranças , mas com conexões entre fatos reais. Conexões que na verdade não existiriam se não fosse o observador a posteriori tentar encontrar uma explicação.
Depois que o fato acontece rapidamente encontramos explicações e provamos. E todos dizem que somos inteligentes quanto mais explicarmos e "provarmos" com fatos.
Com relação à psicólogos ou receitadores-de-dogras-contra-depressão ... estou numa batalha contra eles. Pelo menos contra a maioria deles.
Como o texto comenta parcialmente com muita cautela... eles são muitas vezes a causa de problemas psicológicos.
Tenho diversos exemplos com diversos "profissionais " para citar .. mas este é emblemático:
Minha Tia teve um derrame decorrente de mal de Alzheimer. Para ajudar no tratamento levaram-na à um profissional que sem pestanejar "jogou " a minha tia doente contra a minha outra tia (cuidadora)dizendo que muito dos problemas que ela vinha sentindo(tristeza) era culpa da cuidadora "ser muito dura" e "não dar liberdade" à doente. E FALOU isso para a doente.
É óbvio que a minha tia doente "aceitou" tal indução vinda de um "profissional" (e por estar com as faculdades mentais alteradas).
ponto.
Se eu tivesse lá teria mandado ele engolir o diploma e a pós dele(no exterior).
um abraço!
Posted by: Julio Lins | 06/07/2009 at 10:13