Escrever uma resenha de Outliers: The Story of Success* (leia aqui), o novo livro do Malcolm Gladwell, foi relativamente tranquilo. Até porque muita gente já havia ouvido falar desse autor, ou de uma de suas obras anteriores, como Blink: The Power of Thinking Without Thinking ou The Tipping Point: How Little Things Can Make a Big Difference†. Mas quem conhece o famoso Gregory Berns? Ou quem sabe o que é um Iconoclasta?
O termo iconoclasta deriva do grego eikonoklástes - aquele que destrói ícones. Sua origem está atrelada ao dogma religioso presente nos Dez Mandamentos, segundo o qual as pessoas não devem adorar imagens.
Modernamente a palavra é empregada num sentido mais amplo, identificando aquelas pessoas que quebram regras, paradigmas, que fazem coisas que os outros dizem que não podem ser feitas. Esse é o tema do ótimo Iconoclast: a neuroscientist reveals how to think differently (Harvard Business Press, 2008), de Gregory Berns (disponível no Brasil pela Editora Record, com o título "O Iconoclasta").
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O fato de eu ter começado a ler Iconoclast imediatamente após o Outliers foi uma feliz coincidência, pois os temas têm muito em comum. Sendo assim, prefiro começar esse post falando da diferença fundamental entre o iconoclasta e o fora-de-série, tal como descrito por Gladwell.
O tipo de personalidade e comportamento característicos de um iconoclasta, da forma como Berns o define, compõe o perfil de um fora-de-série - ainda que a recíproca não seja verdadeira: ao contrário do fora-de-série, o iconoclasta não é, necessariamente, um sucesso de crítica e público. Ao menos não durante sua vida. O fora-de-série de Gladwell atinge um nível de realizações e reconhecimento enquanto vai compondo sua obra. Exemplos disso são outliers como Bill Gates, Pelé ou John D. Rockefeller.
Já os iconoclastas, apesar das grandes revoluções que possam ter operado em suas áreas específicas, ou até num contexto social mais amplo, não experimentaram ou não viram, obrigatoriamente, seu legado reconhecido.
Exemplos muito claros disso são Howard Armstrong e Vincent van Gogh. Armstrong foi o criador, dentre outras coisas, da tecnologia de FM, cuja patente foi objeto de disputa durante mais de uma década, fato que levou seu criador à depressão e, posteriormente, ao suicídio. Já van Gogh dispensa apresentações e maiores explicações, uma vez que sua insanidade mental é, atualmente, tão inquestionável quanto a genialidade de suas obras.
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O que realmente torna o livro de Berns interessante é que, como neurologista, ele apoia suas teorias em recentes descobertas no campo das neurociências. Partindo das novas tecnologias de neuroimagem - que aos poucos vão nos revelando os segredos do cérebro, esse ilustre desconhecido - o autor identifica os traços e características das pessoas que, de fato, fazem aquilo que os outros diziam não ser possível.
Grosso modo, Berns acredita que os iconoclastas enxergam o mundo de forma diferente dos reles mortais, em virtude de seus cérebros se comportarem de maneira atípica. Longe de querer propor teorias de seres superiores, suas instigantes ideias têm encontrado enorme respaldo na comunidade científica mundial. Sem mais delongas, vamos a elas!
Para Berns, o cérebro de um iconoclasta funciona de forma diferente dos demais em três aspectos básicos: Percepção, Reação ao Medo e Inteligência Social.
O primeiro deles - na verdade acredito que haja uma sequência lógica, onde um leva ao outro - diz respeito à forma como percebemos o mundo à nossa volta. Em nossa jornada evolutiva, a vida adquiriu extrema complexidade onde lidar com as tarefas do dia-a-dia tornou-se um incessante desafio. Sozinho na tarefa de coordenar nossas ações enquanto nos mantém vivos, o cérebro vale-se de engenhosas artimanhas na tentativa de simplificar algumas dessas atividades.
Para trabalhar de forma eficiente - pois a quantidade de energia do corpo humano é limitada - o cérebro usa alguns atalhos. Ao deparar-se com o desafio de interpretar estímulos físicos originados nos cinco sentidos, ele busca maneiras de diminuir o esforço em identificá-los. Isto é conseguido através da associação desse estímulo com algo que já vimos, ouvimos ou cheiramos antes, enfim, com alguma experiência anterior.
Como todos temos várias experiências anteriores, o cérebro precisará decidir com qual ele irá associar aquilo que está percebendo no momento. Trata-se, assim, de um problema de interpretação. Considerando que tudo pode ter múltiplas interpretações, aquela que o cérebro escolhe representa, então, sua melhor opção. Essa escolha baseia-se, por sua vez, num encaixe quase estatístico que mostra a maior adequação de uma interpretação em relação à outra, dentro de uma das muitas categorias que ele tem armazenadas em seu vasto repositório de informações: a memória.
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A percepção responde, assim, por boa parte da complexidade desse desafio, pois o modo como percebemos as coisas não é apenas um resultado do que nossos olhos e/ou ouvidos transmitem ao cérebro. Mais do que a realidade física de fótons ou ondas sonoras, a percepção é um produto do cérebro.
A figura ao lado, conhecida como Triângulo de Kanizsa, representa um ótimo exemplo disso‡. Apesar de não haver um triângulo branco no centro dela, você é capaz de enxergá-lo nitidamente, pois é a coisa mais parecida com que o seu cérebro consegue fazer uma rápida associação - a menos que você tenha sido um jovem na década de 1980 e passado longas horas em frente a um Atari jogando Pac-Man...
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Se esse processo nos permite perceber e avaliar as coisas com mais rapidez e eficiência, por outro ela pode limitar nossas possibilidades de enxergar a realidade, no sentido mais amplo do termo. Isso ocorre pois a pessoa cujas experiências passadas forem pouco variadas, terá menos alternativas para entender e classificar aquilo que seus sentidos capturam.
A percepção é construída, portanto, através de um processo de aprendizagem que não está irrevogavelmente pregado ao cérebro. Ela é adquirida através da experiência e, sendo assim, pode ser constantemente reaprendida. Mas como órgão preguiçoso que é, o cérebro só muda se for obrigado a isso. Para tal ele precisa ser constantemente forçado a reaprender ao ser confrontado com algo novo, pois novidade equivale a aprendizado, e aprendizado significa reescrever fisicamente o cérebro.
Para reduzir os limitantes efeitos das experiências passadas em nossa percepção o ideal é bombardear o cérebro com realidades diferentes, ideias novas, conceitos inéditos. Novidades liberam os processos de percepção das amarras de antigas experiências e forçam o cérebro a improvisar julgamentos.
Essa afinidade do iconoclasta com o novo confere-lhe, assim, um enorme poder de renovação e ampliação das categorias armazenadas em seu cérebro. Isso permite que um número muito maior de associações possa ser feito e mais interpretações tornem-se possíveis.
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Resumidamente, a aguçada curiosidade de um iconoclasta haverá de permitir-lhe expôr-se a um número muito maior de estímulos que, por sua vez, criarão e enriquecerão seu repositório de experiências. Com esse fabuloso arcabouço teórico, prático e estético, o iconoclasta torna-se apto a questionar padrões, buscar novas realidades, propôr mudanças, destruir crenças e criar um mundo diferente do qual as pessoas acreditam.
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O problema com a novidade, contudo, é que ela está fora da zona de conforto da maioria de nós. Nem todo mundo sente-se à vontade ao sair de seu mundo particular e conhecido, para embrenhar-se por caminhos onde nunca esteve antes. O novo desperta o medo. E é exatamente a forma como o iconoclasta se relaciona com seu próprio medo que o torna tão especial. Essa é a segunda caracteríscia do iconoclasta abordada por Berns e que nós veremos no próximo post (clique aqui para a segunda parte de O Iconoclasta).
ATUALIZAÇÃO:
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* Disponível no Brasil pela Editora Sextante com o Título "Fora-de-série: outliers, descubra porque algumas pessoas têm sucesso e outras não".
† Lançado no Brasil pela Editora Sextante com o título de "O ponto da virada: como pequenas coisas podem fazer uma grande diferença".
‡ Para mais ilusões interessantes, visite essa página.
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Se você gostou desse conceito de alimentar a curiosidade para cultivar a criatividade, não deixe de ler o texto Serendipity, onde falo sobre descobertas acidentais na ciência. Descubra a surpreendente origem dessa palavra e como a sagacidade acidental te ajuda a encontrar a pergunta que se encaixa à resposta.
Uma versao PODCAST desse site seria muito interessante!!
Posted by: Mike | 21/02/2012 at 23:41
O que voce diria de Nikolas Tesla? Acho que igual a esse cara nao existe!
Posso estar ficando doido, mas esse tema me lembra o tema central de Matrix (1).
Posted by: Mike | 21/02/2012 at 22:10
Caro Rodolfo,
Me sinto na obrigação de te parabenizar pelo blog. Me identifico muito com os assuntos tratados aqui. Acredito que o seu trabalho tem ajudado no fluxo de algumas mentes "engarrafadas" que passam por aqui e despertam interesse.
Abraços,
Brunno C Mello
Posted by: Brunno C Mello | 28/07/2010 at 14:28
Prezado Rodolfo,
Sabe aquela inquietação do Neo em Matrix? Pois é, estou sempre com a sensação de que algo está fora do lugar em minha vida. As vezes tenho a impressão de viver em diferentes universos: uma parte de mim está aqui e agora (fisicamente), e a outra está acolá e agora (mentalmente). Será que os iconoclastas, diferentemente de mim (um simples mortal), conseguem trazer suas diversas experiências mentais para o presente real?
Parabéns pelo Blog!
Abraços,
Ricardo
Posted by: Ricardo Marchi de Lara | 11/05/2010 at 15:00
Já li vários textos e finalmente estou seguro para afirmar: este blog é extraordinário. Meus parabéns, caro Rodolfo. Continue assim!
Posted by: Ricardo | 02/03/2010 at 23:00
Rodolfo,
Também não sei como cheguei aqui... mas cheguei pra ficar... já estou te "seguindo" no twitter... e já está add nos favoritos!
Parabéns!
Abraços,
Denise (Vitória/ES)
Posted by: Denise Pereira | 30/08/2009 at 17:03
Caro Rodolfo,
Não me pergunte como eu cheguei ao seu blog, jamais vou saber dos caminhos randômicos que eu persigo. Só sei de uma coisa, não quero me perder dele nunca mais. rs
Rapaz, vc é bom!
Cheguei atrasada pra "festa" e você já postou a resenha completa do Iconoclastas. Isso me dá o direito de escolher em qual página comentar.
Como não poderia ser diferente: Adorei.
Gosto de como as neurociências tentam superar o discurso mofado da psicanálise.
Sou uma típica iconoclasta do mal. rs
Por que do mal? Porque minha inteligência social é baixa para além da conta. Quebro as regras e jogo isso na cara das pessoas como se entornasse um balde de cólera.
Assusto os bem comportados com minhas idéias desconjuntadas, mas calcadas em uma lógica irretocável.
Meu humor negro incomoda. Minha presença,às vezes, choca, sem que eu faça nada para isso. Basta a percepção da minha presença.
Tenho algumas dúvidas quando o autor afirma que percepção é um estado do cérebro. Acho que é um estado da mente. E a mente está muito longe do cérebro, no meu simplório entendimento.
Nossa, isso está mais para uma mea culpa do que para um simples comentário.... rsrsrs
Até mais ler, Rodolfo.
Prazer passar por aqui,
Abraços,
Maristela
Posted by: Maristela Moura | 27/02/2009 at 18:28
Rodolfo, meu caro.
Sempre nos surpreendendo com posts fabulosos.
Olha que o meu cérebro vem trabalhando no ponto morto há muito tempo e eu nem me dei conta disto. Maldito cotidiano. E o pior de tudo, faz de mim um cagão, literalmente falando.
Aguardemos ansiosamente pelo próximo post. Pelo jeito esse é mais um livro que vai pra minha prateleira.
Abs.
Posted by: Eder Rabelo | 16/01/2009 at 22:36
Caro Rodolfo,
Muito interessante, aguardo ansioso o post seguinte.
Jairo Siqueira
Posted by: Jairo Siqueira | 14/01/2009 at 18:56